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sexta-feira, 1 de agosto de 2008

O GUARDIÃO DO FORTE ORANGE

Nossa história começa com um nome: José Amaro de Souza Filho; e uma sentença: 20 anos de prisão por homicídio, decretada em 1970.

Zé Amaro, como é conhecido na Ilha de Santa Cruz do Itamaracá, a 50 quilômetros de Recife, é pernambucano, mora, toma conta e cuida do Forte Orange, que é uma belíssima fortaleza construída pelos holandeses em 1631, um ano depois de invadirem Pernambuco.

A história de Zé Amaro se liga a do Forte Orange de forma muito curiosa. Levado à Casa de Detenção do Recife, em 1970, para começar a cumprir sua pena por homicídio, Zé, que nunca tinha ido à escola, aprendeu a ler e escrever com outro detento na prisão.

Depois de um ano preso, a Casa de Detenção do Recife foi fechada e Zé Amaro transferido para a Penitenciária Agrícola de Itamaracá (P.A.I), em 1971.

Como era um prisioneiro com bom comportamento e apresentava senso de cooperação, além de desempenhar a atividade artesanal entalhando peças de madeira, Zé Amaro foi selecionado junto com outros 39 presos para formar uma equipe de limpeza do Forte Orange, que seria restaurado pelo Exército Brasileiro entre 1971 e 1973.

Zé Amaro e os outros presos capinaram, tiraram o lixo e recolheram os cocos verdes da antiga fortaleza. Foi nessa ocasião, já no primeiro encontro com o Forte, que Zé Amaro apaixonou-se pela construção histórica: “Eu dizia a todo mundo que quando deixasse a cadeia eu ia morar no Forte e tomar conta dele. Fiquei encantado. Naquele dia resolvi que faria de tudo para passar o resto da vida no Forte”, relembra Zé Amaro.

Na ocasião do primeiro encontro com o Forte Orange, Zé Amaro fez uma promessa para Nossa Senhora da Conceição: se fosse possível viver ali, passaria um ano acorrentado a uma bola de ferro.


Zé Amaro: amor ao Forte Orange à primeira vista


Três anos depois, em 1974, a promessa de Zé Amaro parecia ainda não ter surtido efeito. O detento foi transferido de presídio e seu contato com o Forte Orange foi interrompido. Sendo assim, Zé Amaro dedicou-se exclusivamente ao artesanato, fabricando peças entalhadas em madeira.

Os trabalhos artísticos e o bom comportamento mais uma vez renderam ótimas referências de Zé Amaro com as autoridades policiais.

O Preso foi convidado para participar de uma exposição artística no Paraguai, ainda na década de 70: “Eu fui o primeiro preso a sair do Brasil sem escolta”, conta Amaro, que na ocasião da viagem enfrentou protesto de outros detentos, que apostaram que Zé não voltaria mais ao Brasil.

Porém, ao fim da exposição paraguaia, Zé Amaro voltou ao presídio motivado a continuar o trabalho artístico com esculturas. Passou a ensinar a arte de esculpir e entalhar madeira a outros detentos. Algumas pessoas doavam madeira para que ele pudesse desenvolver as oficinas e a criação das peças que foram exibidas em várias exposições pelo Brasil.

Com a atividade artesanal e os trabalhos com os outros presos, Zé Amaro conseguiu obter das autoridades a redução de sua pena e, após ficar preso 8 dos 20 anos totais de sua sentença, adquiriu a liberdade condicional, em 1978.

Com a liberdade, Zé Amaro viu novamente vivo o sonho de viver no Orange. Pediu permissão ao Exército para morar no Forte, e se comprometeu a limpar e restaurar a fortaleza dentro das limitações de seus recursos próprios.

A permissão para viver no Orange foi concedida, porém, a nova moradia, sem água encanada, energia elétrica e estrada de acesso, não apresentava um mínimo de conforto.

Zé Amaro encontrou um depósito de lixo a céu aberto, que servia de esconderijo para marginais. No meio da sujeira, Zé achou uma antiga bala de ferro usada pelos holandeses nos canhões que repeliam as embarcações que se aproximavam da costa de Pernambuco.

A promessa feita para Nossa Senhora da Conceição pôde ser paga. Com o auxílio de um tipo de algema e uma corrente, Amaro prendeu a bala de canhão pouco acima do tornozelo direito, e a arrastou por um ano, até que conseguiu limpar todo o Forte Orange: “Na ilha, todos me chamavam de maluco do forte, de doido. O povo achava que eu era um fantasma. Eu vivia como um ermitão. Sofri muito preconceito; além de ‘maluco’, eu era ex-presidiário”, recorda Zé Amaro.

Amaro tinha apenas uma enxada para limpar o matagal. Aos poucos, as ruínas foram novamente ganhando jeito de monumento histórico de verdade.

A recuperação do Forte Orange era financiada com o dinheiro das vendas das peças de madeira e das esculturas produzidas nas oficinas que Zé Amaro continuou realizando com os amigos presos, mesmo depois de ter saído da cadeia.

A renda gerada pela venda do artesanato era modesta, porém, suficiente para ser aplicada na iniciativa de restauração do monumento histórico.

Depois do Orange limpo e sem a bala de canhão amarrada ao pé, Zé Amaro sentiu a necessidade de arrecadar recursos para uma restauração mais profunda na fortaleza histórica, e foi à Brasília: “Era 1991, mas o presidente Collor não me recebeu e seus assessores não deram ouvidos ao que eu disse”, afirma Zé Amaro, que não desistiu, e foi à embaixada da Holanda, onde foi orientado a criar uma fundação.

Em 1994, Zé Amaro e a esposa Gilsilene Souza abriram a Fundação Forte Orange: “Com a Fundação, o governo holandês liberou um dinheiro e o Forte pôde ser restaurado por inteiro, com a construção de banheiros e do portão”, diz Zé Amaro.

Em 1996, apesar de ter concretizado seu sonho, Zé Amaro passou a viver um tormento. O Instituto Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Prefeitura de Itamaracá decretaram o Forte patrimônio nacional e Zé Amaro foi despejado do local, então já aberto à visitação pública.

Zé Amaro não desanimou e foi ao então ministro da Cultura, Francisco Weffort, e relatou sua história: “Quando terminei de falar, ele me deu a autorização para continuar a trabalhar no forte e me ofereceu uma casinha ao lado da fortaleza, onde moro até hoje. A casa é até jeitosa, mas do meu gosto eu queria estar lá dentro do forte”, afirma Zé Amaro.




Construído em 1631, o Forte Orange também serviu como prisão de frades portugueses avessos à implantação do calvinismo holandês no nordeste brasileiro. Com a expulsão dos holandeses de Pernambuco em 1654, o Forte foi reformado pelos portugueses para proteger a cidade vizinha de Igaraçu. Os lusitanos também rebatizaram o forte com o nome de Fortaleza de Santa Cruz do Itamaracá, porém, o novo nome nunca pegou, tendo o nome dado pelos holandeses, Forte Orange, permanecido até os dias atuais.


No interior do Forte, há uma loja de venda dos artesanatos feitos por Zé Amaro. Há também uma capelinha e um museu com verdadeiras relíquias encontradas em escavações no local. São peças dos tempos das ocupações holandesa e portuguesa (balas de canhão, crucifixos e artefatos de ferro). Para chegar à ilha de Itamaracá (“pedra que canta” em tupi) o visitante deve seguir pela BR-101 no sentido norte até Igaraçu. A partir daí, pega-se a estrada PE-35. A ilha é ligada ao continente por uma ponte sobre o rio Jaguaribe, e fica a 50 quilômetros de Recife. O Forte fica aberto diariamente, das 8h às 17h.

Deitado em uma rede armada embaixo da sombra de um pé de jamelão plantado por ele mesmo, Zé Amaro, que é conhecido na ilha como “O Guardião do Forte”, controla os barraqueiros e fiscaliza o turismo ao redor do Orange, além de tomar conta do mangue e se exaltar com quem joga lixo onde não deve.

Depois da ordem de despejo, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) deu a Zé Amaro uma medalha de honra ao mérito, em dezembro de 2002.

Zé Amaro, que dos 65 anos de vida dedicou 29 para cuidar do Forte Orange, confessa a vontade de viver muito tempo ainda no local. Ele diz que em suas orações pede para não morrer logo a fim de poder continuar tomando conta da fortaleza e viver na ilha de Itamaracá: “Eu não posso me separar da ilha porque sou uma parte do Forte Orange. Eu sou uma pedra do Forte e não posso sair dali. Escolhi a ilha para morar e com fé em Deus vou viver muitos anos ali. Dei minha vida para aquele lugar e não me arrependo. Faria tudo de novo sem pestanejar”, afirma Zé Amaro.

A trajetória do ex-presidiário Zé Amaro, que virou símbolo da preservação do patrimônio histórico no Brasil e tem três filhas: Sol, Marte e Vega, é retratada no documentário ‘Orange de Itamaracá’, de Marcio Câmara e Franklin Júnior.


Cássio Ribeiro

Críticas e sugestões: e-mail zzaapp@ig.com.br e orkut http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=18423333339962056517

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